segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A grande luta

- Pra cima! Soque para cima. Quer acertar seu rosto?
"Acertar a si mesma?" Era possível. De algum modo estava sempre se sabotando... na certa haveria uma explicação freudiana muito interessante. "Ato falho", pensou.
- Direto! Jab! Direto! Gancho! - Gritava o instrutor.
O excesso de esforço físico a que não era acostumada fazia o coração disparar. Concentrava-se: "Lenços brancos". Lembou-se das doenças que inventava para fugir das aulas de Educação Física durante a escola, mas agora era diferente, estava ali por opção.
Se o mundo acabasse nos próximos dias morreria com apenas duas certezas: a existência de um grande complô e da inexplicável sensação de segurança transmitida por lenços de papel. Não era obsessão doentia, apenas uma constatação empírica.
A cada quilo ganho, o que deveria ser apenas alguns apertos no jeans resolvidos com uma peça um pouco mais larguinha, acabavam se transformando numa longa reflexão de que os fabricantes reduziam, a cada nova coleção, todos os números. Por trás disso, ela conjecturava algum propósito obscuro para levar a população feminina economicamente ativa à anorexia.
Quanto aos lenços, já era uma certeza instintiva, sempre que podia, em qualquer que fosse a ocasião estocava-os na nécessaire, nos bolsos. Era preciso que estivessem assim, por perto, sempre brancos, limpos, como um último oásis no deserto, um refúgio capaz de socorrer daquele aperto de mão indesejado e inevitável, o suor aflito do meio do dia, ou pronto para receber uma anotação de última hora.
No começo ainda chegou a se desculpar pelos primeiros golpes imprecisos, recebeu um sorriso afável da adversária.
- Tudo bem, bata com força. Era estranho ver alguém tão doce lutando. Saiu da academia pensando nas vezes que lutou de verdade, não só fisicamente, mas metaforicamente também, mas a situação lhe trazia com mais força os conflitos físicos que participou. Em todas as duas vezes venceu.
- Você não é mais forte que eu.
- Sou.
Enquanto o garoto a rodeava se preparando para o golpe ela o segurou pelo pescoço e o sacudiu como um frango. Tinham a mesma idade, mas ele era franzino, terminou a "luta" todo vermelho e com falta de ar.
O outro confronto aconteceu anos depois e foi histórico. Fora contra Cristiane, ela era grande e já tinha 13 anos. O desafio de Cris veio depois que essa descobriu que ela revidara as ofensas de sua ex-melhor amiga. A mãe já havia dito que não gostava que ela ficasse na casa dos pretos, mas como também era preta, nunca viu problema. Até aquele instante.
- Repete o que disse de mim.
Ela repetiu. Seria uma grande luta. Estava com muito medo de Cris, mas do alto de seus 11 anos defenderia sua honra e estava decidida a apanhar de pé. Não fora preciso.
- Agora eu vou te bater.
- Vem!
Cristiane avançou pouco mais de dois passos e meio, ao ver que ela não recuara saiu correndo. O susto de ver a adversária fugir só não foi maior do que o alívio. Como boa coroinha conhecia a história de Davi e sentiu que ostentava o mesmo tipo de vitória. Uma felicidade que lhe seria muito cara quando sua mãe descobrisse o episódio e mandasse aquela peia, "mesmo que a mão da mamãe seja bem mais pesada."

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O amor

- Boa noite!

- Eu te amo!

A expressão saiu tão natural quanto constrangedora. O celular bambeou entre a cabeça e o ombro e ela sentiu os braços, que carregavam as sacolas, afrouxarem. Ele, que até o instante anterior preparava-se para retomar seu assento na guarita, deteve o gesto com a boca entre aberta e os olho fixos na moradora do 101.

Então, era isso, ela realmente acabara de se declarar ao porteiro. Não que houvesse algum problema, pelo menos não explícito, no fato de ter se declarado ao porteiro, a não se pelo fato de que não queria ter feito isso e havia sido pega em mais uma armadilha das respostas automáticas, que, ultimamente, incorporava mais e mais ao seu dia-a-dia. Amar o porteiro não era problema, não amá-lo também, mas dizer que o amava sem amar, sim, sobretudo, porque agora ele sustentava uma aterrorizadora expectativa depois de superada a surpresa.

Poderia simplesmente ter agido como se o "eu te amo" tivesse sido um bom dia, a reação natural certamente poria em dúvida ao rapaz o que os seus ouvidos haviam apreendido e ele se convenceria de estar ficando maluco, mas era tarde, não dava mais tempo para ser natural. Os lábios do rapaz esboçaram uma leve reação quando ela se precipitou.

- Espera!

Bom. Agora tinha conseguido alguns segundos. “O que fazer? O que fazer?”. Justificar aquele equívoco dizendo que ela simplesmente havia se confundido por estar falando ao celular com um namorado que nunca apareceu no prédio pareceria absurdo, até porque a sentença foi proferida enquanto ela realmente se dirigia ao porteiro e a solução mais sensata realmente lhe parecia sair correndo dali e não descer nunca mais.

- Veja. Eu não amo você e sim o seu trabalho, o que você representa, você é um trabalhador e recebe bem as pessoas e...

De repente a expressão do bom vigia era de visível desconfiança, de soslaio. “Ele pensa que sou louca”. Voltou-se para o hall e saiu em disparada para o elevador, quando deteve-se e dirigiu-se transformada para cima do pobre homem.

- É isso. Eu te amo. Sou louca por você e durante todos esses meses tenho feito um enorme esforço para não me declarar, mas veja, você é casado e eu respeito isso e é por isso que você nunca mais me ouvirá falar sobre isso. Jamais.

Não podia esperar o elevador depois dessas palavras e passou triunfante e resignada até as escadas. Tinha feito o melhor, tinha sido digna, estava orgulhosa. Sofreria algumas semanas sempre que passasse pela guarita para que o homem tivesse certeza daquele amor e do grande sacrifício feito. Não voltaria a cumprimentá-lo em sinal de desesperança e não tornaria a cumprimentar nenhuma pessoa sem ter certeza de seus sentimentos.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O Manifesto

Extraído de: http://www.sujeitoa.tk/


- Em defesa dos alienáveis direitos humanos à alienação, preguiça, nulidade, conformismo e subversão o "Sujeito A" lançará, agora, o seu manifesto. Pela democracia e...O som da voz do orador do comitê da Frente dos Puritanos Sujeitos, ou simplesmente os FdPS, lhe causava engulhos. "Malditos amendoins!" Precisava aprender a parar de comer antes de começar a passar mal. Mas, pensando bem, não era de todo ruim. Pelo menos, havia abandonado o vício de mascar chicletes já mastigados.
- Está quase na hora, disse um homenzinho de muito cabelo.
"Como fui me convencer disso? Queria estar em casa dormindo", pensava o "Sujeito A". Foi arrancado de sua utopia com uns bons sacodes.
- Anda! Todos estão esperando. Dizia o mesmo assessor descabelado, que juntamente com os correligionários da Frente abarrotavam o palanque.
- Você precisa subir no púlpito e ler.
- Ler? Ler o que?
- O Manifesto da FdPS."Meu Deus, o Manifesto. É verdade". Como presidente eleito, tinha ficado com a incumbência de resumir todos os grande idéias do grupo num manifesto, que seria um marco pós-moderno. Começou a tatear os bolsos e procurar o bloquinho de onde havia feito suas mal traçadas linhas - nunca uma frase feita lhe pareceu tão propícia - porque todos esperavam."Não sei onde está. Pior, não sei o que escrevi", constatou. O manifesto deveria ser uma metáfora do que a Frente pretendia: a desconstrução, a desnaturalização do olhar e todos aqueles adjetos e expressões pomposas que os intelectualóides adoram e que ele, por acaso, havia caído de pará-quedas com a função de resumir. Suas poucas palavras e a expressão blasé fizeram com que fosse nomeado como a personificação do espírito de sua época, segundo os adeptos da Frente. Olhou para suas pernas de frango e lembrou que precisava comprar os florais do gato.- Ele fica muito agressivo sem o remédio.
- O quê? Perguntou alguém que ele já não identificava, sentiu-se como que levado para frente do microfone enquanto tentava descobrir porque tinha se metido naquilo mesmo. O corpo bambeou diante da multidão de jovens na praça. Tombou sobre o púlpito, que virou em direção da platéia e dispersou dezenas de folhas brancas. Antes de retornar a si e conseguir ser erguido pelos assessores, iniciaram as saudações:
- Genial!
- Antropofágico!
- Um verdadeiro manifesto contra todo o falso conteúdo social.
"Não. Aquilo não estava acontecendo".
- Não sei o que fez com o nosso manifesto, mas essa idéia é muito melhor. Era novamente o homenzinho. Ao retomar a sua posição na frente do palanque se sentiu contagiado pela animação. - Eu quero a felicidade das possibilidades, disse triunfante. Essa era a última frase do manifesto. Ele, finalmente, lembrara, mas não fora ouvido; todas as atenções estavam sobre as folhas vazias.Afastou-se do púlpito coma alguma dificuldade entre apertos de mão e saudações. Agora iria para casa, ainda não era meio-dia podia voltar para cama e fingir que nada daquilo tinha acontecido. Mais tarde, se o procurassem, diria que renunciou ao cargo por sentir que já havia cumprido papel histórico. "Deixo meu legado numa maldita folha em branco".

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

No ônibus

A visão do ônibus praticamente vazio a agradou. Era uma noite quente e todas as janelas do coletivo estavam à disposição. Não que fosse exatamente uma entusiasta do transporte público urbano, mas era necessário reconhecer que em noites como aquela, num ônibus não muito sujo, o trajeto era agradável. Escolheu o par de assentos do seu lado esquerdo, próximo a porta traseira, aqueles que ficam um degrau acima dos demais e são destinados a idosos, gestantes e deficientes. Mal teve tempo de se acomodar do lado da janela quando viu um tipo cruzar a borboleta de passagens onde estava o cobrador. Era vermelho, alto e tinha o aspecto sujo.
Respirou aliviada pensando que, com todos aqueles lugares vagos, não corria risco de tê-lo companheiro de viagem. Olhou para rua e passou a acompanhar da janela as paisagens correndo no sentido contrário ao seu. Voltou-se novamente para o corredor quando sentiu uma presença. "Não acredito! Não acredito!". Repetia a si mesma enquanto o homem acomodava-se ao seu lado. - Boa noite!
- Boa noite! Respondeu conformadamente.
Ficou surpresa ao constatar que ele não fedia. "Pelo menos isso". Cogitou uma estratégica troca de lugares, mas depois perdeu a coragem. Era óbvio que ele não havia escolhido um assento e sim a companhia, assim como seria muito claro e ofensivo sua repulsa se ela se trocasse de banco. "Não é certo. Odiaria que fizessem isso comigo".
- Cidade quente, não?
- Hum.
- Belém é uma cidade bonita, mas muito quente.
É isso, o cara era sulista, fazia todo sentido agora. A pele vermelha, a barba por fazer, com certeza era um desses mochileiros malucos. Apesar de não sentir nenhum cheiro ruim estava convencida de que ele não havia tomado banho, afinal, já tinha ouvido, mais de uma vez, que, por causa do clima frio, a água no sul do país era congelante e que até os mais pobres precisavam de chuveiro elétrico. É isso, ele não deve gostar de tomar banho e fazer a barba, deve ter se acostumado por causa do frio.
- Sabe eu vim participar de um congresso de Educação Física, estou hospedado no Manoel Barata. Sou estudante e trabalho como instrutor numa academia...
"Grande! É só um estudante velho querendo conversar. Sinal dos tempos. As pessoas estão cada vez mais sozinhas, todo mundo fala, mas ninguém ouve". Essa conclusão a tornou mais receptiva e pensou em todas as vezes que teve vontade de puxar assunto com desconhecidos e, mesmo não prestando atenção no que o homem dizia, passou a assentir com a cabeça como se estivesse interessada e em alguns momentos quase meneou um sorriso.
- Então o que você acha de ir comigo.
- Como?
Ele pôs o braço sobre o encosto de cabeça dos assentos dianteiros e a confinou no seu lugar da janela. O movimento do ônibus e o contato com o braço do sujeito a desesperavam. Olhou para o cobrador que estava intertido colando vales como se fossem figurinhas. "Ai, meu Deus!"
- Eh... desculpe, eu não sou daqui. Preciso descer.
Se surpreendeu com a notável destreza com que conseguiu se desvencilhar do grandalhão e saltar porta a fora quando o ônibus nem havia freiado totalmente.
- Solidariedade urbana, é? Só eu mesma. E a merda que não tenho mais dinheiro. Droga de cidade quente.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Trecho de alguma coisa

Lembro do som abafado dos pés descalços nas tábuas e da sensação de movimento causada pela oscilação entre as frestas das madeiras no chão que reverberavam nas paredes. Ela estava sentada na poltrona verde do jogo de sala. Lembro do móvel não tanto pela cor, mas pelo pó que recendia toda vez que nos encapetávamos e danávamos a pular nos estofados.
Ela estava sozinha e me lancei sobre seu colo. Ela acariciava os meus cabelos quando, como que soprado pelo diabo, perguntei:
- Mãe, a gente nasce, cresce, fica adulto, morre e depois começa tudo de novo, né?
Quando penso nisso, hoje, não consigo lembrar se a expressão dela diante da pergunta foi de espanto ou incompreensão. Ela levantou os olhos por um tempo, voltou-os a mim e respondeu.
- Não.
Respirei fundo para sentir o seu cheiro, como fazia sempre que ela me punha no colo, e continuei: - O que acontece então?
- Depois que a gente morre, vamos encontrar com Deus. Ele criou todas as coisas e é nosso pai.
- E a gente não volta mais?
- Não. É por isso que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, para que, quando ele nos chamar, possamos ir para o céu virar anjinhos.
- Tenho que amar mais a Deus do que a senhora?
- Sim.
- E que o papai?
- Sim.
- A senhora vai morrer?
- Todos vamos.
Até hoje só duas revelações me causaram tanto horror.
Lembro de ter envolvido meus braços no seu pescoço e voltado a aspirar o cheiro. Era o mesmo que ficava na camisola sobre a cama quando ela ia trabalhar. O trapo velho que eu enrolava no pescoço para sentir menos saudade e achava tão macio. Uma saudade que era tão forte e fazia a barriga e o peito doerem.
- Não gosto de Deus. Eu gosto mais da senhora.
- Você é muito pequeno, mas um dia vai entender.
Naquela noite quando fui dormir, entre os soluços incontidos causados pela conversa, chorei doidamente e odiei profundamente a Deus. Era inconcebível, e talvez ainda seja, amar qualquer outro ser ou coisa mais do que a ela. Chorei de raiva porque amar tanto minha mãe era pecado. Depois chorei porque minha mãe morreria. E, finalmente, chorei porque queria amar a Deus, mas não sabia como. Mais tarde descobriria que essa limitação me acompanharia por muito mais tempo do que a educação cristã de minha mãe e o meu desejo de agradá-la admitiriam.

Ela

(D) "... mas a vida anda corrida e se eu ficar parado ela me esmaga. Maldita vida, hein?".

(T) "É. A vida nos esmaga. Na verdade acho é que ela no engole. Isso me parece uma verdade nestes tempos. Ouso dizer ainda mais, digo que ela é mais astuta do que isso, porque ela não nos engole simplesmente. Ela saliva, degusta. Nos estraçalha lentamente com seus dentes de rotina, obrigações e anseios de adultos.
É de uma verocidade e lascívia ofensivas, mas que sabiamente espera para fartar-se. Pois que se ela lançasse despudoradamente sobre nós com uma só bocada reagiríamos. Nos veríamos com horror sendo solvidos naquele suco gástrico e nos revoltaríamos. Afinal, quem sai do conforto de sua sala para uma pança insalubre e não tentaria destruir aquela arquitetura maniqueísta.
Mas creia-se, amigo. Ela é esperta. Ela rumina silenciosamente, diariamente, apaticamente e, assim, da boca para o estômago e para a enzimas e alimento para as células da sociedade, é um bater de cílios e uma questão de anos de trabalho, medos, busca por realizações de pessoas responsáveis e adultas".

domingo, 13 de julho de 2008

Elevador

- Vai entrar agora?

- Pretendo. Algum problema?

- E a tapioca?

- Ah, não. Eu vou comendo. Ela tá ótima, já vale um jantar.

- No elevador?

- Por que, não pode?

- Não que não possa, mas você vai andar enquanto come?

- Mas são só dois andares.

...

- Será que é falta de educação?

- Não sei.

- Será que há regras de boas maneiras sobre comer tapioca no elevador?

- Não sei.

...

- Vou criar um blog.

- É?

- É. E nele terá um post de uma conversa num elevador sobre etiqueta e tapioca.

- Acho bacana.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Uma tarde

O dia está lindo hoje. O sol brilha quente e forte, mas eu encontro a sombra amena das copas das árvores nas ruas menos movimentadas. Sento na beira calçada e entre as minhas coxas posso ver a depressão entre a calçada e o asfalto por onde escorre o filete d'água limpa que vem da boca da mangueira displicente sobre a calçada. O dia está bonito e do meu ângulo de visão gosto de ver as pernas que caminham apressadas do outro lado da calçada. Escrevo para mim.