terça-feira, 28 de setembro de 2010

Número 2

Eram de um verde água, tinha certeza. Talvez por isso o olhar sonolento conservasse sempre aquele aspecto úmido, que contraditoriamente não era marejado, nem despendia lágrimas, simplesmente parecia molhado e com profundidade.

- Essa é a coisa mais ridícula que você já inventou. Ora vejam, se apaixonar por alguém porque parece bom. Não lê jornais? Vai acabar picotada em quatro sacos pretos de lixo.

A sinceridade de Adelaide era sua âncora com o mundo real; só ela era capaz de lhe mostrar a impossibilidade da maioria dos seus planos. A voz estridente funcionava como um sino, uma sirene que a acordava todos os dias nos intervalos do expediente do mercado, mas, dessa vez, nem seus achaques a traziam de volta. “- Sim, parecem bons”, repetia a si mesma.

- Meu bem, você precisa aprender comigo. Como acha que me casei com Edgar? Você acha que se eu estivesse olhando para olhos, ao invés do bolso e de uma boa pegada, eu teria marido, filhos? Você é boba e um dia desses vai perceber todas as grandes oportunidades que desperdiçou.

- Preciso voltar. Acabou o intervalo.

Atrás do balcão de pacotes, era parcialmente feliz. Desde que se entendia por gente, gostava de olhar os embrulhos nas mãos de estranhos e imaginar o conteúdo e seu destino. Como empacotadora, ela tinha parte de sua fantasia revelada, mas também não desejaria perder todo o encanto daquele vício, que apenas se refinou, pois agora, sabendo o conteúdo, divertia-se imaginando o destino, o consumidor final. Ficava atenta à conversa dos clientes à procura de pistas e, normalmente, era gratamente recompensada.

Como toda quarta-feira, quase no fim do expediente, ele aparecia. No carrinho, a caixa de cerveja, os pacotes de papel A4, o recipiente de álcool em gel. Poderia ser um gênio incompreendido ou só um alcoólatra que faz muitas cópias, mas, como nunca dizia nada, ela não sabia o destino das compras.

A primeira vez que o viu teve medo. Era muito alto, corpulento e parecia incrivelmente pesado. Tentou fazer uma brincadeira e segurar em sua mão, o que lhe provocou pavor. Mas, ao fim do primeiro mês do repetido ritual, com exceção do toque de mãos, ela descobriu, no grandalhão, incrível docilidade nos olhos que contrastavam com toda a figura que ele apresentava.

Mais do que docilidade, via tristeza e se sentiu solidária à dor que imaginava que ele carregava. Esperava ansiosa toda semana pela compra do estranho, sob os olhares de reprovação de Adelaide, que tinha certeza que Tereza estava cada vez mais doida. “Num saco de lixo, isso sim. Ela que não se esperte. Eu conheço os homens”, repetia para as colegas do caixa.

Certa vez, ele perguntou se gostava do emprego e ela orgulhosamente explicou seu fascínio por pacotes, o que não o entusiasmou.

Na última quarta-feira do mês, ele não veio. Tereza se manteve esperançosa até às 20 horas, quando a mercearia fechou. Na semana seguinte, início de agosto, ele também não apareceu e a aflição começou a apoderar-se da mulherzinha. Adelaide tentou consolá-la, avisando do problema que ela tinha se livrado, que uma das meninas do caixa já o tinha visto com uma pretinha ordinária e que ela não devia se importar com aquilo, que era mulher bonita, tinha porte para casar até com um gringo se quisesse - e voltava a repetir a história do japonês que não deixava de assediá-la.

Adelaide via o sofrimento de Tereza com despeito e considerava ofensivo um sentimento tão grande por um desconhecido. Numa quinta-feira de setembro, sem suportar a ausência dos amados olhos e desesperançada, Tereza deixou o emprego e voltou para o interior, onde poderia ajudar a cuidar dos filhos da irmã.

Temporariamente, Adelaide assumiu o setor de pacotes e, vez ou outra, se pegava com “maldita mania” de imaginar para onde eles iam. Suspirava lembrando dos olhos e se ressentia por não ter tido as mãos tocadas pelo desconhecido e por não ter parentes no interior para onde se refugiar.