sexta-feira, 19 de setembro de 2008

O amor

- Boa noite!

- Eu te amo!

A expressão saiu tão natural quanto constrangedora. O celular bambeou entre a cabeça e o ombro e ela sentiu os braços, que carregavam as sacolas, afrouxarem. Ele, que até o instante anterior preparava-se para retomar seu assento na guarita, deteve o gesto com a boca entre aberta e os olho fixos na moradora do 101.

Então, era isso, ela realmente acabara de se declarar ao porteiro. Não que houvesse algum problema, pelo menos não explícito, no fato de ter se declarado ao porteiro, a não se pelo fato de que não queria ter feito isso e havia sido pega em mais uma armadilha das respostas automáticas, que, ultimamente, incorporava mais e mais ao seu dia-a-dia. Amar o porteiro não era problema, não amá-lo também, mas dizer que o amava sem amar, sim, sobretudo, porque agora ele sustentava uma aterrorizadora expectativa depois de superada a surpresa.

Poderia simplesmente ter agido como se o "eu te amo" tivesse sido um bom dia, a reação natural certamente poria em dúvida ao rapaz o que os seus ouvidos haviam apreendido e ele se convenceria de estar ficando maluco, mas era tarde, não dava mais tempo para ser natural. Os lábios do rapaz esboçaram uma leve reação quando ela se precipitou.

- Espera!

Bom. Agora tinha conseguido alguns segundos. “O que fazer? O que fazer?”. Justificar aquele equívoco dizendo que ela simplesmente havia se confundido por estar falando ao celular com um namorado que nunca apareceu no prédio pareceria absurdo, até porque a sentença foi proferida enquanto ela realmente se dirigia ao porteiro e a solução mais sensata realmente lhe parecia sair correndo dali e não descer nunca mais.

- Veja. Eu não amo você e sim o seu trabalho, o que você representa, você é um trabalhador e recebe bem as pessoas e...

De repente a expressão do bom vigia era de visível desconfiança, de soslaio. “Ele pensa que sou louca”. Voltou-se para o hall e saiu em disparada para o elevador, quando deteve-se e dirigiu-se transformada para cima do pobre homem.

- É isso. Eu te amo. Sou louca por você e durante todos esses meses tenho feito um enorme esforço para não me declarar, mas veja, você é casado e eu respeito isso e é por isso que você nunca mais me ouvirá falar sobre isso. Jamais.

Não podia esperar o elevador depois dessas palavras e passou triunfante e resignada até as escadas. Tinha feito o melhor, tinha sido digna, estava orgulhosa. Sofreria algumas semanas sempre que passasse pela guarita para que o homem tivesse certeza daquele amor e do grande sacrifício feito. Não voltaria a cumprimentá-lo em sinal de desesperança e não tornaria a cumprimentar nenhuma pessoa sem ter certeza de seus sentimentos.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

O Manifesto

Extraído de: http://www.sujeitoa.tk/


- Em defesa dos alienáveis direitos humanos à alienação, preguiça, nulidade, conformismo e subversão o "Sujeito A" lançará, agora, o seu manifesto. Pela democracia e...O som da voz do orador do comitê da Frente dos Puritanos Sujeitos, ou simplesmente os FdPS, lhe causava engulhos. "Malditos amendoins!" Precisava aprender a parar de comer antes de começar a passar mal. Mas, pensando bem, não era de todo ruim. Pelo menos, havia abandonado o vício de mascar chicletes já mastigados.
- Está quase na hora, disse um homenzinho de muito cabelo.
"Como fui me convencer disso? Queria estar em casa dormindo", pensava o "Sujeito A". Foi arrancado de sua utopia com uns bons sacodes.
- Anda! Todos estão esperando. Dizia o mesmo assessor descabelado, que juntamente com os correligionários da Frente abarrotavam o palanque.
- Você precisa subir no púlpito e ler.
- Ler? Ler o que?
- O Manifesto da FdPS."Meu Deus, o Manifesto. É verdade". Como presidente eleito, tinha ficado com a incumbência de resumir todos os grande idéias do grupo num manifesto, que seria um marco pós-moderno. Começou a tatear os bolsos e procurar o bloquinho de onde havia feito suas mal traçadas linhas - nunca uma frase feita lhe pareceu tão propícia - porque todos esperavam."Não sei onde está. Pior, não sei o que escrevi", constatou. O manifesto deveria ser uma metáfora do que a Frente pretendia: a desconstrução, a desnaturalização do olhar e todos aqueles adjetos e expressões pomposas que os intelectualóides adoram e que ele, por acaso, havia caído de pará-quedas com a função de resumir. Suas poucas palavras e a expressão blasé fizeram com que fosse nomeado como a personificação do espírito de sua época, segundo os adeptos da Frente. Olhou para suas pernas de frango e lembrou que precisava comprar os florais do gato.- Ele fica muito agressivo sem o remédio.
- O quê? Perguntou alguém que ele já não identificava, sentiu-se como que levado para frente do microfone enquanto tentava descobrir porque tinha se metido naquilo mesmo. O corpo bambeou diante da multidão de jovens na praça. Tombou sobre o púlpito, que virou em direção da platéia e dispersou dezenas de folhas brancas. Antes de retornar a si e conseguir ser erguido pelos assessores, iniciaram as saudações:
- Genial!
- Antropofágico!
- Um verdadeiro manifesto contra todo o falso conteúdo social.
"Não. Aquilo não estava acontecendo".
- Não sei o que fez com o nosso manifesto, mas essa idéia é muito melhor. Era novamente o homenzinho. Ao retomar a sua posição na frente do palanque se sentiu contagiado pela animação. - Eu quero a felicidade das possibilidades, disse triunfante. Essa era a última frase do manifesto. Ele, finalmente, lembrara, mas não fora ouvido; todas as atenções estavam sobre as folhas vazias.Afastou-se do púlpito coma alguma dificuldade entre apertos de mão e saudações. Agora iria para casa, ainda não era meio-dia podia voltar para cama e fingir que nada daquilo tinha acontecido. Mais tarde, se o procurassem, diria que renunciou ao cargo por sentir que já havia cumprido papel histórico. "Deixo meu legado numa maldita folha em branco".