terça-feira, 29 de junho de 2010

Dois Perdidos

Enquanto a viagem real não acontece, viajo com Arnaldo Antunes. Logo mais terei texto na Gotaz. Por hora a trilha sonora é Iê Iê Iê.


Quando eu quis você
Você não me quis
Quando eu fui feliz
Você foi ruim
Quando foi afim
Não soube se dar
Eu estava lá mas você não viu
Tá fazendo frio nesse lugar
Onde eu já não caibo mais
Onde eu já não caibo mais
Onde eu já não caibo mais
Onde eu já não caibo em mim
Quando eu quis você
Você desprezou
Quando se acabou
Quis voltar atrás
Quando eu fui falar
Minha voz falhou
Tudo se apagou você não me viu
Tá fazendo frio nesse lugar
Onde eu já não caibo mais
Onde eu já não caibo mais
Onde eu já não caibo mais
Onde eu já não caibo em mim
Mas se eu já me perdi
Como vou me perder
Se eu já me perdi
Quando perdi você
Mas se eu já te perdi
Como vou me perder
Se eu já me perdi
Quando perdi você

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Explicações

Mesmo depois que o objeto é apartado de nós, quando fechamos os olhos nós continuamos a reter sua imagem, embora menos nítida do que quando a enxergávamos. (T. Hobbes)

Saudades?

Muitas

Tantas que nem cabem no peito

Correm doidas para as mãos trêmulas

Chegam aos olhos inchados

Se alojam nas pernas inquietas

Vão para a boca contorcida

Enormes

Em um momento se declaram donas do corpo

Querem todo espaço, todo resquício de memória

Para no outro instante se aquietarem

Ficarem pequeninas

Fracas

Se retraem para deixar o corpo descansar

Mentirosas dizem não se importar

Fingem que vão embora


segunda-feira, 14 de junho de 2010

Azuis

O sinal vermelho sobre a pálpebra esquerda. Lembranças de um cotidiano já remoto cuja memória insiste em fazer presente.

O reflexo do tronco nu no espelho, os olhos embaçados por trás das lentes e o meio sorriso bobo.

Alimento-me da saudade desses instantes em rações diárias.

Não é saudável, mas o que de fato é?

Não era pra ser real. Tinha que ser finito.

Todo fim de conto é previsível

Pra que me serve um negócio que não cessa de bater?

- Meu filho, na nossa família só há dois jeitos de morrer: do coração ou loucos.

A primeira vez que sentiu seu coração foi numa viagem de ônibus. O trajeto era curto, mas as obras na pista tornavam o trânsito lento. A pontada inicial, forte no lado esquerdo, foi precisa e rápida, mais parecia uma distensão muscular. Recuperou o fôlego e livrou-se da sensação de desconforto, mas no intervalo de segundos ela voltou, dessa vez, traiçoeira, pelas costas.

A verdade é que sabia muito pouco sobre sua família materna. Conhecia por alto a história de bêbados, viciados e frustrados. Pensar uma linhagem de duas gerações de casamento consangüíneos daquela maneira, mais do que um assustador presságio, era intrigante.

Não pôde deixar de se sentir comovido com as palavras da tia, que não era louca. A história lhe pareceu uma metáfora oportuna para sua própria vida. Identificou-se ao pensar naquelas pessoas com uma debilidade reconhecida de se aterem ao real e tão sensíveis à vida.

Por mais de uma vez tinha pensado na loucura e se imaginava desvairado. No entanto, quando de fato esteve frente a frente com insanidade, não a de seus pensamentos, mas a da amada, aquilo lhe pareceu insuportável. Não havia poesia. Era só a loucura, deixando aqueles olhos azuis cada vez mais vazios e opacos.


A medida que a dor crescia, sentia o inconformismo mais pesado. Sabia que seu músculo era saudável, mas a dor imaginária o seguia. Foi quando decidiu por um fim naquele tormento. Sem mais forças, despediu-se da mulher inconsciente, preparou uma mala de divorciado e retornou à casa da mãe. Pediu apenas para que ninguém voltasse a comentar nada da esposa e nem das lembranças de família.

Por dentro ria-se, com satisfação, sabendo que agora não morreria louco. Já não sofria de saudades, tinha retirado o coração numa cirurgia secreta, que fora realizada por seus médicos imaginários no caminho de volta para a casa familiar.

Estava satisfeito, viveria muito e agora sabia que também nunca mais sofreria por amor.


Meu texto na Revista Sopro