segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Trecho de alguma coisa

Lembro do som abafado dos pés descalços nas tábuas e da sensação de movimento causada pela oscilação entre as frestas das madeiras no chão que reverberavam nas paredes. Ela estava sentada na poltrona verde do jogo de sala. Lembro do móvel não tanto pela cor, mas pelo pó que recendia toda vez que nos encapetávamos e danávamos a pular nos estofados.
Ela estava sozinha e me lancei sobre seu colo. Ela acariciava os meus cabelos quando, como que soprado pelo diabo, perguntei:
- Mãe, a gente nasce, cresce, fica adulto, morre e depois começa tudo de novo, né?
Quando penso nisso, hoje, não consigo lembrar se a expressão dela diante da pergunta foi de espanto ou incompreensão. Ela levantou os olhos por um tempo, voltou-os a mim e respondeu.
- Não.
Respirei fundo para sentir o seu cheiro, como fazia sempre que ela me punha no colo, e continuei: - O que acontece então?
- Depois que a gente morre, vamos encontrar com Deus. Ele criou todas as coisas e é nosso pai.
- E a gente não volta mais?
- Não. É por isso que devemos amar a Deus sobre todas as coisas, para que, quando ele nos chamar, possamos ir para o céu virar anjinhos.
- Tenho que amar mais a Deus do que a senhora?
- Sim.
- E que o papai?
- Sim.
- A senhora vai morrer?
- Todos vamos.
Até hoje só duas revelações me causaram tanto horror.
Lembro de ter envolvido meus braços no seu pescoço e voltado a aspirar o cheiro. Era o mesmo que ficava na camisola sobre a cama quando ela ia trabalhar. O trapo velho que eu enrolava no pescoço para sentir menos saudade e achava tão macio. Uma saudade que era tão forte e fazia a barriga e o peito doerem.
- Não gosto de Deus. Eu gosto mais da senhora.
- Você é muito pequeno, mas um dia vai entender.
Naquela noite quando fui dormir, entre os soluços incontidos causados pela conversa, chorei doidamente e odiei profundamente a Deus. Era inconcebível, e talvez ainda seja, amar qualquer outro ser ou coisa mais do que a ela. Chorei de raiva porque amar tanto minha mãe era pecado. Depois chorei porque minha mãe morreria. E, finalmente, chorei porque queria amar a Deus, mas não sabia como. Mais tarde descobriria que essa limitação me acompanharia por muito mais tempo do que a educação cristã de minha mãe e o meu desejo de agradá-la admitiriam.

7 comentários:

Anônimo disse...

:~(
Fiquei arrepiado. Escreve mais, viu? To gostando muiiiiitoooo.
Quero mais, mais e mais.
Bjoooooo

Anônimo disse...

lindo. não pode parar.

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
diego fagundes disse...

dizem que eles andam contentes por aí.... foi a ultima noticia que eu ouvi, espero que eseja verdade.
esse texto aí me comoveu de uma maneira muito forte, foi como reviver um momento da minha infância em que tive essa mesma conversa com minha mãe, meu comportamento foi o mesmo também, mas ainda choro hoje em dia

saudações do menino-urso

zema ribeiro disse...

já ganhou link. abração!

Prosa Falsa disse...

Amiga parabéns estão ótimos...continueeeeeeeeeeeeee!!
Bjos

Lidiane Campos disse...

"Lembro de ter envolvido meus braços no seu pescoço e voltado a aspirar o cheiro. Era o mesmo que ficava na camisola sobre a cama quando ela ia trabalhar. O trapo velho que eu enrolava no pescoço para sentir menos saudade e achava tão macio".
Minha Eneida de Moraes!