sexta-feira, 22 de agosto de 2008

No ônibus

A visão do ônibus praticamente vazio a agradou. Era uma noite quente e todas as janelas do coletivo estavam à disposição. Não que fosse exatamente uma entusiasta do transporte público urbano, mas era necessário reconhecer que em noites como aquela, num ônibus não muito sujo, o trajeto era agradável. Escolheu o par de assentos do seu lado esquerdo, próximo a porta traseira, aqueles que ficam um degrau acima dos demais e são destinados a idosos, gestantes e deficientes. Mal teve tempo de se acomodar do lado da janela quando viu um tipo cruzar a borboleta de passagens onde estava o cobrador. Era vermelho, alto e tinha o aspecto sujo.
Respirou aliviada pensando que, com todos aqueles lugares vagos, não corria risco de tê-lo companheiro de viagem. Olhou para rua e passou a acompanhar da janela as paisagens correndo no sentido contrário ao seu. Voltou-se novamente para o corredor quando sentiu uma presença. "Não acredito! Não acredito!". Repetia a si mesma enquanto o homem acomodava-se ao seu lado. - Boa noite!
- Boa noite! Respondeu conformadamente.
Ficou surpresa ao constatar que ele não fedia. "Pelo menos isso". Cogitou uma estratégica troca de lugares, mas depois perdeu a coragem. Era óbvio que ele não havia escolhido um assento e sim a companhia, assim como seria muito claro e ofensivo sua repulsa se ela se trocasse de banco. "Não é certo. Odiaria que fizessem isso comigo".
- Cidade quente, não?
- Hum.
- Belém é uma cidade bonita, mas muito quente.
É isso, o cara era sulista, fazia todo sentido agora. A pele vermelha, a barba por fazer, com certeza era um desses mochileiros malucos. Apesar de não sentir nenhum cheiro ruim estava convencida de que ele não havia tomado banho, afinal, já tinha ouvido, mais de uma vez, que, por causa do clima frio, a água no sul do país era congelante e que até os mais pobres precisavam de chuveiro elétrico. É isso, ele não deve gostar de tomar banho e fazer a barba, deve ter se acostumado por causa do frio.
- Sabe eu vim participar de um congresso de Educação Física, estou hospedado no Manoel Barata. Sou estudante e trabalho como instrutor numa academia...
"Grande! É só um estudante velho querendo conversar. Sinal dos tempos. As pessoas estão cada vez mais sozinhas, todo mundo fala, mas ninguém ouve". Essa conclusão a tornou mais receptiva e pensou em todas as vezes que teve vontade de puxar assunto com desconhecidos e, mesmo não prestando atenção no que o homem dizia, passou a assentir com a cabeça como se estivesse interessada e em alguns momentos quase meneou um sorriso.
- Então o que você acha de ir comigo.
- Como?
Ele pôs o braço sobre o encosto de cabeça dos assentos dianteiros e a confinou no seu lugar da janela. O movimento do ônibus e o contato com o braço do sujeito a desesperavam. Olhou para o cobrador que estava intertido colando vales como se fossem figurinhas. "Ai, meu Deus!"
- Eh... desculpe, eu não sou daqui. Preciso descer.
Se surpreendeu com a notável destreza com que conseguiu se desvencilhar do grandalhão e saltar porta a fora quando o ônibus nem havia freiado totalmente.
- Solidariedade urbana, é? Só eu mesma. E a merda que não tenho mais dinheiro. Droga de cidade quente.

5 comentários:

Entrelinhas disse...

Muito bom!!
Quando aconteceu comigo não tive tanta sorte... o cara levou meu dinheiro e meu celular.

Anônimo disse...

ta melhorando muito! crônicas urbanas são as melhores!

Gabirú disse...

Muito bom, aconteceu mesmo?! =P

zema ribeiro disse...

tens que linkar o sujeitoa aqui. abração!

Lidiane Campos disse...

"Olhou para rua e passou a acompanhar da janela as paisagens correndo no sentido contrário ao seu". Lindo esse trecho; fiquei impressionada com a tua capacidade de descrição. Na verdade, sempre andei de ônibus em toda a minha vida, mas jamais iria descrever essa cena de forma tão simples e brilhante como fizeste.
Já sou tua fã sem ter motivos, e ainda mais agora... Nem se fala.